domingo, 26 de julho de 2009

Retalhos de Conversação

I
Durante muitos anos se me acontecia acordar antes dos outros pensava que o bater do relógio de parede na sala era o coração da casa, e ficava horas e horas de olhos
abertos quieto no escuro a ouvi-la viver na certeza de que enquanto o pêndulo dançasse de um lado para o outro
sístole diástole, sístole diástole, sístole diástole
nenhum de nós morreria.

II
Quantas estradas um homem deve andar
Antes de poder ser chamado de homem?
Quantos mares uma gaivota de navegar
Antes de dormir na areia?
Quantas vezes as balas de canhão têm que voar
Antes de serem banidas para sempre?
Quantos anos uma montanha pode existir
Antes de ser levada pelo mar?
Quantos anos algumas pessoas podem viver
Antes de serem livres?
Quantas vezes um homem pode virar o rosto
E fingir que não vê?
Quantas vezes um homem tem que olhar para cima
Antes de poder ver o céu?
Quantos ouvidos um homem deve ter
Antes de poder ouvir as pessoas chorando?
Quantas mortes terão de ocorrer até que ele saiba
Que já morreram pessoas demais?

III
Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.

IV
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

V
As coisas que te cercam, até onde
alcança a tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa -
pois bem: elas vão ficar. Você não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo o que pesa.

VI
Restam estes papéis. Resta este desenho novo, nascendo sem que eu o tivesse aprendido: a todo o momento, mesmo quando o interrompo, oferece-me a voluta principiada,
e demonstra, a cada suspensão, a probabilidade de não ter fim. Quando assento o aparo na curva interrompida de uma letra, de uma palavra, de uma frase, quando
prossigo dois milímetros adiante de um ponto final ou de uma vírgula, limito-me a prosseguir um movimento que vem de trás: este desenho é, ao mesmo tempo, o código e
a decifração. Mas o código e a decifração de quê?

VII
Poetar é como o trabalho de um mecânico de precisão. A poesia deve fazer tudo quanto possa para igualar-se às audácias da matemática. E então, de novo: como os
alquimistas, deve esforçar-se para conseguir investigações e fórmulas raras, chegar a ser ela própria uma alquimia lírica original.

VIII
Não, não é bem isso.

domingo, 19 de julho de 2009

Férias?

Férias de alunos de Letras normalmente são compostas de livros (além de outras coisas que não precisam ser mencionadas). Então, três membros da equipe se dispuseram a traçar e compartilhar seu "plano de férias".

Larissa Andrioli - Nem tudo são espinhos. Depois de 4 meses de noites mal dormidas, Homero e Saussure, as férias chegaram. E nas últimas semanas de aula foram se acumulando no meu quarto livros que eu pretendia ler nesse hiato. Alguns da Biblioteca, outros do Gilvan (valeu, Gilvan!), outros meus mesmo. Uma coisa que sempre me preocupou foi nunca ter lido Shakespeare; então, coloquei Hamlet ali, mas nem abri ainda. Na mesma situação se encontram Noites brancas, O Amor nos tempos do cólera, Laranja mecânica e Admirável mundo novo. Consegui me entregar um pouco ao Sérgio Sant'Anna e li O sobrevivente, que achei muito interessante, principalmente o conto "Frederico"; resta na lista O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. Não avancei muito em Crime e castigo, apesar de estar gostando bastante. Culpa de José Saramago, que em A caverna conseguiu superar todas as minhas expectativas, e em Manual de pintura e caligrafia me deu uma surra (seu A paixão segundo G.H.). Continuo na minha saga para ler a obra completa dele, e os próximos da lista são O ano da morte de Ricardo Reis e Levantado do chão, que acabei de começar. Resolvi conhecer Lobo Antunes. Peguei O Esplendor de Portugal e me assustei um pouco com sua pontuação incomum (mais ainda que a do Saramago) e com sua narrativa, mas peguei o ritmo e estou achando bem interessante. Minha aposta pra esse resto de férias, agora ocupado também por Friedrich e outros teóricos, fica nisso: avançar na saga saramagueana, bem como na dostoievskiana e conhecer, finalmente, Agualusa em Um estranho em Goa. Darei conta? Não creio, mas vou tentar.

Laura Assis - Na verdade, meu plano de férias inexiste, simplesmente porque não tenho férias. Ok, não tenho aulas esse mês, mas os trabalhos do mestrado têm que ser entregues na segunda semana de agosto, então subentende-se que a única finalidade das férias é fazer os trabalhos. Mas como sou desobediente, resolvi me dar uns dias de férias assim mesmo e fui para FLIP. E, como vocês vão perceber, todas as minhas leituras mais recentes estão diretamente ligadas a essa viagem.
Já terminei o período lendo O filho eterno, do Cristovão Tezza, um dos melhores livros que li nos últimos tempos. Me surpreendi principalmente com as escolhas estéticas do autor. Dentro do tema sobre o qual ele se propôs a escrever, a opção por valorizar mais a ação psicológica do que os fatos em si foi muito acertada. Já com O sol se põe em São Paulo, foi bem diferente. Há tempos me sinto em dívida com Bernardo Carvalho, nunca havia lido nada dele. No entanto, confesso que fiquei bem decepcionada com esse livro. Estória boba e mal amarrada, parece que o autor começou a escrever planejando um grande livro, mas se perdeu e escreveu a metade final de qualquer jeito. De qualquer maneira, darei a Bernardo uma segunda chance. Retomo amanhã a leitura de O filho da mãe. Falando em amanhã, lembrei que hoje terminei Dois irmãos, bom livro do Milton Hatoum. Falta alguma coisa ali e eu não sei dizer exatamente o que é. A leitura é sim agradável, mas tem algo de anacrônico naquela trama, naquele modo de narrar.
Outro livro que tenho lido, é Rilke shake, livro de estréia de Angélica Freitas. Poesia nova, bem humorada, quase subversiva, como nos versos do poema “Estatuto do desmallarmento”, um dos meus preferidos: “minha senhora, tem um mallarmé em casa? / você sabe quantas pessoas morrem por ano / em acidentes com o mallarmé?”
E ainda antes do fim das “férias”, pretendo ler L’Invité Mystère, do Grégoire Boullier. Provavelmente não vai dar tempo, mas não custa tentar. Ah, e tem também Leite derramado do Chico Buarque, que preciso reler. Mas aí nesse caso é só trabalho mesmo. E que trabalho...

Pamella Oliveira - Eu comecei a fazer um plano de férias já no início do ano quando percebi que não teria muito tempo durante o mesmo. Então, comecei por alguns que julgava mais importante, mas que acabaram sendo eliminados mais tarde. No fim das contas, quando me vi tendo que pegar os livros que me interessavam realmente e que eu pudesse ler no meu, relativamente, curto período de férias, a lista ainda era enorme! Por uma sorte do destino, achei os mais difíceis que eram os livros do Chico Buarque: Estorvo, Leite derramado e Benjamin, e, acredito que eu não precise ter um porquê pra ler Chico Buarque. Também listei um que me deixava curiosa por ter sido um dos principais livros da geração Beat, coisa que me interessa muito, que é o On the road do Jack Kerouac, que eu achava que seria difícil de achar, e não foi. Ainda bem. Mas, em compensação, um que muito me interessava mas era impossível-de-encontrar-em-uma-biblioteca-pública: Pergunte ao pó, aquele mesmo que Bukowski chamou de "ouro no lixo" quando o encontrou, o motivo desse livro é que John Fante é uma pessoa que me chama atenção. O evangelho segundo Jesus Cristo do cara que nos inspirou nesse post: José Saramago, porque eu ouvi dizer uma vez que, depois desse livro, alguém que já tinha uma espécie de fé duvidosa deixaria de ter e mudaria completamente para o lado dos ateus, quis experimentar. Também acredito que uma pessoa que não pode morrer sem ler Jorge Luis Borges, então peguei O elogio da sombra que muito me encheu os olhos. Até aqui não tinha nada que eu já conhecesse a fundo, então eu peguei Doze contos peregrinos do meu sempre querido Gabriel García Márquez, porque era um dos famosos dele e que constavam na minha lista de ausência ainda, e se eu não lesse nada dele me sentiria incompleta. Fiquei frustrada por não achar Onde andará Dulce Veiga? do ilustre Caio Fernando Abreu que tem até versão cinematográfica, porém também muito difícil de encontrar, e é um da minha lista de férias que eu não vou conseguir ler. E, por último, (a citar, uma vez que a lista é bem maior) Romance negro e outras histórias do Rubem Fonseca, porque tenho boas lembranças dele, e lembranças são sempre ótimas referências.

domingo, 12 de julho de 2009

Sérgio Sant’Anna e o texto tatuado

Mesmo com a polêmica que circundou a iniciativa, o projeto Amores Expressos sobreviveu e os livros – escritos por diferentes autores que passaram um mês nos mais distintos lugares do planeta – estão sendo aos poucos lançados.
O primeiro foi Cordilheira, de Daniel Galera, sobre o qual inclusive já escrevi por aqui. Depois veio O filho da mãe, de Bernardo Carvalho e tudo indica que o próximo será O texto tatuado, de Sérgio Sant’Anna, que teve um capítulo publicado na Granta BR número 4 e do qual transcrevo aqui um trecho:

Eu estava sentado numa mesa de fundos do bar A dançarina. Gostava de observar as pessoas na penumbra e achava bonito e misterioso como as luzes multicores do letreiro e da figura da dançarina da fachada incidiam indiretamente no interior do bar. A dançarina parecia ter sido inspirada numa espanhola, ou numa cigana, ou uma mistura disso, ou nada disso. O ritmo de seus movimentos era sincopado, regularmente ela aparecia com a saia esvoaçante deixando ver suas coxas, admiráveis, azuladas, vermelhas, prateadas...
O rapaz se aproximou tão sorrateiramente de minha mesa que foi como um espectro surgindo de lugar nenhum. Era elegante de corpo, magro, algo pálido, sinuoso, bonito, embora seus cabelos amarrados num rabo de cavalo já correspondessem a um modelo antigo. Mas era o tipo de jovem que teria a seus pés as garotas mais interessantes, ou velhos depravados. Ou os deuses a seu serviço, se quisesse escrever poesia. Também poderia deslizar por um palco, fazendo o papel que pedissem dele, até mesmo o de Hamlet, sem solenidade, sem deixar de ser ele mesmo. Ou vagar pelas ruas mais tortuosas de Praga, ou pelas margens do rio, para conseguir drogas a qualquer custo.
Sim, eu adivinhava seus braços roxos sob as mangas compridas de uma camisa de cor verde clara, que parecia caminhar para cor alguma, ajustada a seu corpo e enfiada para dentro da calça larga, amarrada por um cordão grosso.
Meu coração bateu mais forte e empalideci, porque li no jovem o seu futuro. Seria mais um, desde muitos séculos, a atirar-se nas águas do Vlatava, sem ter medo, já indiferente, de certa forma já morto antes do salto.
Do mesmo jeito que, agora, não parecia desesperado, quando me disse, em inglês:
– Por Deus, não me mande embora antes de ouvir o que tenho a lhe propor.
– Não estou interessado em nada – eu disse.
– Nem mesmo fragmentos de um texto desconhecido de K., tatuados no corpo de minha irmã gêmea nua?

Tem mais coisa na revista, mas ficaria inviável publicar aqui, é um capítulo grande. Esse é a passagem inicial. Por enquanto o que dá para perceber é que Sant’Anna parece continuar seguindo os rumos da metaficção: o narrador/protagonista se chama Serge e é um escritor. E, pelo jeito, o romance é justamente sobre literatura. E o resto é esperar para ler.
*

domingo, 5 de julho de 2009