Não se reconhecer. Desejar ser outro. Querer nascer outra vez. Normal? Pode ser uma fase. Uma crise. Ou até um dia ruim. Mas e se essa idéia é a obsessão que norteia toda uma vida? Até onde alguém iria para se perder e se achar diferente? No caso de Wilson, protagonista de Do fundo do poço se vê a lua (Companhia das Letras, 2010), a qualquer lugar. Mas o problema acaba sendo resolvido no Egito, pois o compromisso de Joca Reiners Terron, um dos 17 escritores participantes do projeto Amores Expressos, era justamente contar uma história de amor que se passasse naquele país. E como o próprio autor disse em entrevistas, uma de suas primeiras decisões relativas à trama do livro foi a de não partir do óbvio, uma história de amor romântico – “Imaginei que era o que todo mundo ia fazer”. Terron optou por colocar como tema central do enredo um amor fraternal nem um pouco ortodoxo.Entram em cena então o já citado Wilson e seu irmão Willian (esses dois nomes, retirados do conto de Edgar Allan Poe, são apenas o começo das inúmeras referências à mitologia do duplo citadas no romance). Irmãos gêmeos, univitelinos, os dois guardam uma grande diferença que, ao mesmo tempo, equilibra e desequilibra uma equação que deveria ser simétrica. Enquanto William é um homem masculino, viril, tanto internamente quanto na aparência externa, Wilson sente-se desde sempre diferente: feminino, tem uma inteligência mais sofisticada e cresce com referenciais nada convencionais. Um desses referenciais, a figura de Cleópatra, se transformará na obsessão que irá guiá-lo por toda a vida na busca de sua própria identidade.
Aquilo parecia um sorriso, mas não era um sorriso.
Apavorada, olhei para todos os lados e então percebi que não havia mais ninguém naquelas ruínas.
(...)
Estávamos completamente a sós, o monstro e eu.
Mais ninguém.
Aiaiai.
E então ele me tirou para dançar.
Na época de seu lançamento Do fundo do poço se vê a lua dividiu opiniões. Enquanto no Twitter e nos blogs repercutiam boas impressões de leitores e escritores, pelo menos duas resenhas bastante negativas – uma delas publicada na Folha de São Paulo – circularam na internet. A quantidade de informações e acontecimentos ao longo do romance foi criticada e acusada de ter como objetivo esconder uma trama vazia. No entanto, são justamente esses vários eventos que constroem o intrincado enredo do livro. O autor já parte de um mote principal bastante complexo, mas não se furta a desdobrá-lo ao longo da narrativa. Ele não tem medo de perder o fôlego. E não perde. Nós que por vezes nos perdemos tentando alcançá-lo. Joca se esconde em vielas escuras do Cairo, de onde de repente aparece com mais uma surpresa, mais uma reviravolta mirabolante. A não-linearidade da narrativa – que em alguns momentos acompanha cronologicamente a vida dos gêmeos e em outros narra cada movimento das horas de estada de William no Cairo, que vai ao Egito atrás do irmão que não vê há anos –, e o ponto de vista narrativo propositalmente confuso e ambíguo ajudam a aproximar Do fundo do poço se vê a lua de uma narrativa cinematográfica e fazer do livro quase uma obra de realismo fantástico, mas que não deixa de se (des)organizar em torno do caos da realidade.
.
Do fundo do poço se vê a lua
Joca Reiners Terron
Companhia das Letras
280 páginas
R$ 45,50