Desde a ótima capa – mais uma bela realização de Samir Machado de Machado, que vem fazendo grandes trabalhos, como a capa de Raiva nos raios de sol, de Fernando Mantelli – Fora do lugar (Não editora, 2009), segundo livro de contos do carioca “naturalizado gaúcho” Rodrigo Rosp, já começa, de alguma maneira, a anunciar o tom de sua narrativa.
Um sofá no meio da estrada. É estranho? Sim. Mas existem sofás e existem estradas. E se um sofá está no meio de uma estrada, isso aconteceu por algum motivo. Há uma história por trás desse deslocamento. E é justamente esse tipo de história, a trama que, escondida, motiva a inadequação, que Rosp se propõe a contar.
O conto homônimo ao livro é um bom exemplo de como funciona essa dinâmica do insólito possível. Tropeçar em uma chinchila dentro de casa, guardar porta-retratos dentro da geladeira, ter torradeiras e geléia na estante, cachecóis no lustre, ver livros de auto-ajuda que pretendem cometer suicídio... todos esse elementos parecem bastante estranhos e fora da realidade. E são. No entanto, é na resolução do conto que se encontra a chave dessa inadequação, afinal, quem nunca sentiu o mundo sair dos eixos e se tornar um lugar sem lógica depois de ser abandonado por um grande amor?
Do mesmo modo que não é tão esquisita assim a tentativa de negação da passagem do tempo empreendida pelo protagonista de "Funeral dos relógios” pois, se a execução é peculiar, a motivação é bastante conhecida. O caos, portanto, não deixa de ser ao mesmo tempo estranho e, de alguma maneira, familiar. Impossível não se lembrar de Sigmund Freud e seu conceito de unheimlich. Resumidamente: de acordo com Freud, o unheimlich (traduzido para o português como o “estranho familiar” ou, simplesmente, o “estranho”) é algo que estava oculto, recalcado, mas de repente vem à tona, trazendo consigo, além do estranhamento, uma sensação de familiaridade. E é mais ou menos isso que ocorre em alguns dos contos de Rodrigo Rosp.
Merecem destaque também os contos que de algum modo versam sobre a própria literatura, como “Maldito”, que subverte a ideia de sucesso e fracasso da sociedade de consumo, e “Ideia ideal”, uma narrativa sobre como as grandes ideias podem ser pequenas e vice-versa. A tensão também é muito bem conduzida por Rosp, como comprovado em “O carrasco” e “Linguista”. Desse último, destaque para o trecho inicial, que se mostrará irônico e surpreendente diante da revelação final da narrativa:
Escrevo, pois é o que me resta. Apenas isso importa dizer agora; vou ser direto e contar de uma vez a história da mulher que mudou minha vida.
Eu a conheci em um sarau. Quando pus os olhos nos dela vi mais que costumava ver. Usei a fala e a interpelei. Disse-me que estudava língua mortas, em especial o latim – éramos da mesma área.
“Agora, a dor se foi”, conto que encerra o livro, é especialmente interessante. Não apenas pela narrativa na falsa segunda pessoa, mas também pela brincadeira com o intertexto acadêmico embutido na trama. Para não revelar o enredo, por hora basta dizer que Roland Barthes, caso lesse o texto, provavelmente esboçaria um sorriso no final.
A ficção de Rodrigo Rosp é, portanto, mais do que apenas fantástica ou insólita. O nonsense aparece como símbolo da subversão dos elementos, que se encontram deslocados e em tensão. Ao fim da leitura, além da constatação de que Rosp é um ótimo contista, fica também a sensação de que nada é mais absurdo do que a própria realidade.
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Rodrigo Rosp é autor de A virgem que não conhecia Picasso (Não Editora, 2007). Fora do lugar é seu segundo livro de contos.
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Fora do lugar
Rodrigo Rosp
80 páginas
Preço: R$ 16,00
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ok, honras da casa.
ResponderExcluirresenha muito bem escrita (aê, laura) para um livro aparentemente também muito bem escrito. almejo.
Olha, Laura, assim como você sou fã do trabalho do Samir e da própria Não. Tive para comprar estive livro, mas troquei pelo da Carol Bensimon, lendo a sua resenha, acho que escolhi mal... vou ter que ler esse livro!!!
ResponderExcluirO da Carol é o "Pó de parede"? Não li, mas dizem que é ótimo também.
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