Erotismo, liberdade e vida em Cosmologia do impreciso, de Oswaldo Martins
Um texto, independente de seu conteúdo, é sempre um fato cultural. Portanto, depende da época, dos valores, do escritor, dos grupos sociais, da cultura em que foi elaborado. Assim, era de se esperar que numa sociedade cada vez mais explícita, que exibe relações sexuais e outros programas de cunho sensual em horário nobre, a recepção a um livro de poemas eróticos fosse não agradável, mas no mínimo crítica – que o público o recebesse como recebe qualquer outro livro, e em torno dele girassem discussões como as que giram em torno de Saramago ou qualquer outro escritor, ou seja, que o texto publicado fosse problematizado. Certo? Não. Em 2008, o Brasil se viu no meio de uma discussão sobre até que ponto o moralismo e a hipocrisia ainda estariam inseridos na sociedade. Após publicar
Cosmologia do impreciso (7Letras, 2008), seu quarto livro, e ser convidado pela própria diretoria da Escola Parque, onde trabalhava, para falar na sala de a

ula sobre seu trabalho de escritor, Oswaldo Martins foi demitido. O motivo: escrevia poesias de conteúdo erótico-pornográfico.
Cosmologia do impreciso é, antes de tudo, um belíssimo livro: combate a separação entre corpo e espírito para defender a liberdade e a afirmação da vida acima de tudo. Apropria-se da tradição poética, faz diversos intertextos com artes plásticas e música e atinge um objetivo importante: transgride. É sempre perpassado pelo passo à frente, pela afirmação de algo novo ou que, ainda que já tenha sido afirmado, continua fora de circulação. Uma ideia essencial para a compreensão de
Cosmologia do impreciso é a da celebração do corpo e do espírito. Pois é disso que trata a poesia de Oswaldo: celebração. E, a partir disso, transgressão, libertação. A epígrafe geral do livro fala deste par: “a boca é vinho tinto / as mãos são de absinto / e a cintura dela é a estrela por nascer” – os versos de Aldir Blanc misturam elementos ligados ao prazer carnal (boca/vinho, mãos/absinto, cintura) com o elemento sublime, puro (estrela). Mais que mistura, une no mesmo corpo e torna, então, o corpo e o espírito inseparáveis.
Se já é impossível ler um livro de Oswaldo Martins sem ser sempre assaltado pela mesma palavra, escrever sobre o poeta sem tê-la em mente é impensável. A ideia é sempre transgressão: o que dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz “caralho”, “buceta” (sim, grafada com u), “foder”? Em
Cosmologia do impreciso, sexo e vida se confundem. “Bucetas” pode dar lugar a “Eros” – e Eros não é menos que vida.
quando quadros e livros
bucetas são
não são bucetas que se levam
aos livros e quadros
senão que quadros e livros
buscam
o que de bucetas
são
O caráter transgressor da poesia de Oswaldo não está somente na exaltação do sexo, como o poema citado mostra. Na subdivisão “Estudo para pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta volta-se para a religião: começa desconstruindo a imagem de “virgem” de Maria e passa então a uma série de suposições que desmontam os valores da sociedade cristã ocidental. Esta parte do livro é composta por 11 poemas, todos devendo ser lidos com a palavra “se” no início.
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cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças
e com os olhos inebriados de tesão
tocasse aqui uma teta
ali as curvas
as portentosas nádegas
da mulher que se oferecia
mais que a morte
seria a carne
nossa unção
A adoção do erotismo como postura política é uma visão possível durante a leitura de Cosmologia do impreciso. Propor um mundo mais livre dos entraves colocados pelos valores da sociedade ocidental faz parte da proposta modernista e atinge diretamente a formação intelectual de Oswaldo Martins. O erotismo não é a sexualidade, e sim sua metáfora, e o texto erótico é a representação do erotismo. Mais: o texto erótico pode ser também uma metáfora da liberdade. E cada poema de Oswaldo Martins é sempre uma afirmação disso. Esse caráter pode ser entendido se pensarmos que Martins não parte de um ato sexual para criar sua poesia – ele utiliza elementos do sexo para problematizar outras questões, como é o caso de “antimetafísica das apreciações”:
quadros
assim como livros
cheiram a buceta
há livros e quadros
bolorentos
dir-se-iam uma buceta
sem uso
como dizem das bucetas
bem usadas
há quadros e livros
que relampejam
A “buceta” do poema não é física. É um elemento que remete à sexualidade em geral e pode, portanto, ser relacionada à arte, já que é isso que Oswaldo propõe: a transformação da arte em sexo, em fonte de prazer, antes de qualquer coisa. Por isso, Cosmologia do impreciso é mais que um belo livro: é um livro movido por uma tese que atinge a todos nós e a qual todos deveríamos pensar e discutir: até que ponto falta tornar nossa vida mais sexual, no sentido mais erótico da palavra.
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Oswaldo Martins nasceu em Barbacena, MG, em 1960. Formou-se em Letras na PUC-Rio. Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ, é professor de 2º e 3º graus. Publicou os livros
desestudos (2000),
lucidez do oco (2002) e
minimalhas do alheio (2004), todos pela 7Letras.
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Cosmologia do imprecisoOswaldo Martins
Editora 7Letras124 páginas
Preço: R$25,00