Erotismo, liberdade e vida em Cosmologia do impreciso, de Oswaldo Martins
Cosmologia do impreciso é, antes de tudo, um belíssimo livro: combate a separação entre corpo e espírito para defender a liberdade e a afirmação da vida acima de tudo. Apropria-se da tradição poética, faz diversos intertextos com artes plásticas e música e atinge um objetivo importante: transgride. É sempre perpassado pelo passo à frente, pela afirmação de algo novo ou que, ainda que já tenha sido afirmado, continua fora de circulação. Uma ideia essencial para a compreensão de Cosmologia do impreciso é a da celebração do corpo e do espírito. Pois é disso que trata a poesia de Oswaldo: celebração. E, a partir disso, transgressão, libertação. A epígrafe geral do livro fala deste par: “a boca é vinho tinto / as mãos são de absinto / e a cintura dela é a estrela por nascer” – os versos de Aldir Blanc misturam elementos ligados ao prazer carnal (boca/vinho, mãos/absinto, cintura) com o elemento sublime, puro (estrela). Mais que mistura, une no mesmo corpo e torna, então, o corpo e o espírito inseparáveis.
Se já é impossível ler um livro de Oswaldo Martins sem ser sempre assaltado pela mesma palavra, escrever sobre o poeta sem tê-la em mente é impensável. A ideia é sempre transgressão: o que dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz “caralho”, “buceta” (sim, grafada com u), “foder”? Em Cosmologia do impreciso, sexo e vida se confundem. “Bucetas” pode dar lugar a “Eros” – e Eros não é menos que vida.
quando quadros e livros
bucetas são
não são bucetas que se levam
aos livros e quadros
senão que quadros e livros
buscam
o que de bucetas
o que de bucetas
são
O caráter transgressor da poesia de Oswaldo não está somente na exaltação do sexo, como o poema citado mostra. Na subdivisão “Estudo para pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta volta-se para a religião: começa desconstruindo a imagem de “virgem” de Maria e passa então a uma série de suposições que desmontam os valores da sociedade cristã ocidental. Esta parte do livro é composta por 11 poemas, todos devendo ser lidos com a palavra “se” no início.
4
cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças
cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças
e com os olhos inebriados de tesão
tocasse aqui uma teta
ali as curvas
as portentosas nádegas
ali as curvas
as portentosas nádegas
da mulher que se oferecia
mais que a morte
seria a carne
nossa unção
A adoção do erotismo como postura política é uma visão possível durante a leitura de Cosmologia do impreciso. Propor um mundo mais livre dos entraves colocados pelos valores da sociedade ocidental faz parte da proposta modernista e atinge diretamente a formação intelectual de Oswaldo Martins. O erotismo não é a sexualidade, e sim sua metáfora, e o texto erótico é a representação do erotismo. Mais: o texto erótico pode ser também uma metáfora da liberdade. E cada poema de Oswaldo Martins é sempre uma afirmação disso. Esse caráter pode ser entendido se pensarmos que Martins não parte de um ato sexual para criar sua poesia – ele utiliza elementos do sexo para problematizar outras questões, como é o caso de “antimetafísica das apreciações”:
quadros
assim como livros
cheiram a buceta
há livros e quadros
bolorentos
bolorentos
dir-se-iam uma buceta
sem uso
sem uso
como dizem das bucetas
bem usadas
bem usadas
há quadros e livros
que relampejam
A “buceta” do poema não é física. É um elemento que remete à sexualidade em geral e pode, portanto, ser relacionada à arte, já que é isso que Oswaldo propõe: a transformação da arte em sexo, em fonte de prazer, antes de qualquer coisa. Por isso, Cosmologia do impreciso é mais que um belo livro: é um livro movido por uma tese que atinge a todos nós e a qual todos deveríamos pensar e discutir: até que ponto falta tornar nossa vida mais sexual, no sentido mais erótico da palavra.
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Oswaldo Martins nasceu em Barbacena, MG, em 1960. Formou-se em Letras na PUC-Rio. Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ, é professor de 2º e 3º graus. Publicou os livros desestudos (2000), lucidez do oco (2002) e minimalhas do alheio (2004), todos pela 7Letras.
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Cosmologia do impreciso
Oswaldo Martins
Editora 7Letras
124 páginas
Preço: R$25,00
Larissa,
ResponderExcluirobrigado pelos comentários sobre o Cosmologia.
Não li o Cosmologia (e pela resenha parece que tô perdendo, almejo). Do Oswaldo li o 'Lucidez do oco' que é um belo livro. Aliás, preciso reler... li no segundo período da faculdade. É, faz tempo.
ResponderExcluiramei, Larissa! já li partes do trabalho dele e é muito interessante. gosto de literatura que incomoda e, talvez por isso, estejamos aqui, não é mesmo?
ResponderExcluir"não quero mais saber de lirismo que não é libertação"
beijão!
Joyce
Realmente, "A 'buceta' do poema não é física" é o melhor da resenha. Mas gostei. Quando puder,leio o livro.
ResponderExcluir=]