Alteridade e ambiguidade em Do fundo do poço se vê a lua, de Joca Reiners Terron.

Entram em cena então o já citado Wilson e seu irmão Willian (esses dois nomes, retirados do conto de Edgar Allan Poe, são apenas o começo das inúmeras referências à mitologia do duplo citadas no romance). Irmãos gêmeos, univitelinos, os dois guardam uma grande diferença que, ao mesmo tempo, equilibra e desequilibra uma equação que deveria ser simétrica. Enquanto William é um homem masculino, viril, tanto internamente quanto na aparência externa, Wilson sente-se desde sempre diferente: feminino, tem uma inteligência mais sofisticada e cresce com referenciais nada convencionais. Um desses referenciais, a figura de Cleópatra, se transformará na obsessão que irá guiá-lo por toda a vida na busca de sua própria identidade.
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Eu percebi muito cedo que poderia nascer de novo. E renasci mesmo, não numa câmara hiperbárica ou coisa assim, mas numa mesa de cirurgia, e não estou me referindo a uma cesariana. Meu primeiro nascimento foi em São Paulo, em janeiro de 1967. E a segunda vez foi na África, no Egito, na cidade do Cairo, a Mãe do Mundo, e mais precisamente no palco do Club Palmyra, quase quarenta anos depois. É necessário, porém, esclarecer que muita coisa aconteceu entre esses dois nascimentos, e que tudo partiu de um simples equívoco.
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Terron passou um mês no Cairo e em seu blog na época classificou o Egito como um “paradoxo ululante”, pois enquanto “templos e monumentos de 3.000 anos AC continuam intactos, em muito breve as recordações do século XIX e XX não passarão de ruínas”. Atualmente o país está literalmente caindo aos pedaços: “Aqui no Egito um número impressionante de pessoas morre soterrada pela própria casa ou achatada nas ruas por sacadas que despencam sobre sua cabeça.”. Bem diferente dos livros de história, o país é, hoje em dia, um lugar decadente e desagradável.
Mas o perigo vai além. Enquanto cobria a celebração dos egípcios pela queda do presidente Mubarak, na Praça Tahrir, no Cairo, a equipe da CBS News foi rodeada por uma multidão de manifestantes e, no meio da confusão, a repórter Lara Logan se perdeu do resto de sua equipe. Foi encontrada cerca de 20 minutos depois, sendo agredida sexualmente por um grupo de homens egípcios que se aproveitaram do tumulto. É exatamente esse o Egito das páginas do romance de Terron. Uma importante cena do livro, inclusive, constrói-se em torno do perigo e da violência latente nas ruas do Cairo, onde episódios de estupro e assédio sexual – na maior parte das vezes tendo turistas como vítimas – acontecem com uma freqüência assustadora.
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Where are you from, o rapaz pronunciou de maneira quase incompreensível. Whérrráriúfrrrôum, ele repetiu cheio de Rs e avançando para o meu lado. Faltava um ponto de interrogação na frase, o que a deixava mais parecida a uma denúncia do que a uma pergunta, de onde você é, ele acusava. Sua boca arreganhada devia ter sido subtraída a uma máscara de monstro e não lembrava nem de perto qualquer tentativa de contato amistoso.
Aquilo parecia um sorriso, mas não era um sorriso.
Apavorada, olhei para todos os lados e então percebi que não havia mais ninguém naquelas ruínas.
(...)
Estávamos completamente a sós, o monstro e eu.
Mais ninguém.
Aiaiai.
E então ele me tirou para dançar.
Aquilo parecia um sorriso, mas não era um sorriso.
Apavorada, olhei para todos os lados e então percebi que não havia mais ninguém naquelas ruínas.
(...)
Estávamos completamente a sós, o monstro e eu.
Mais ninguém.
Aiaiai.
E então ele me tirou para dançar.
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Do fundo do poço se vê a lua
Joca Reiners Terron
Companhia das Letras
280 páginas
R$ 45,50
Vôtes, aqui em Natal nessa semana disseram que Joca passou bem um ano no Cairo e aí diz que foi só um mês, quem estará correto?
ResponderExcluirTitania
Livro bom pelo comecinho do you tube, vou conferir!
ResponderExcluirTitania
Assim como os outros autores do projeto Amores Expressos, ele ficou na cidade onde o livro deveria se passar durante um mês. Ele fala isso no blog:
ResponderExcluirhttp://blogdojocaterron.blogspot.com