domingo, 17 de maio de 2009

"Vou fazer a arte do meu tempo"

impressões sobre a prosa brasileira contemporânea

É natural que para nós - que obviamente vivemos sob o signo da nossa contemporaneidade - apresentem-se dificuldades consideráveis nos impedindo de vislumbrar uma forma na literatura que está sendo produzida agora, nesse exato momento que escrevo essas linhas ou que vocês lêem essas palavras. E longe de mim pensar que nesse texto conseguirei distinguir e apontar essa unidade - se é que ela já existe ou existirá um dia - e nem é esse meu objetivo. Também não desejo empreender uma investigação acadêmica, nem organizar escritores contemporâneos, colocando-os como a livros em uma estante ou verbetes em uma enciclopédia. Minha motivação aqui é apenas registrar minhas impressões acerca das obras dos autores que vêm moldando a prosa brasileira, trabalho esse cuja forma final - se é que haverá algo a que poderemos chamar um dia de "forma - só poderá ser apreendida daqui um bom par de décadas. Ou mais.
Começo então pelo fim. Explico: o último livro que li foi Cordilheira (Companhia das Letras, 2008), de Daniel Galera. Eu já conhecia o trabalho do autor, havia lido Dentes guardados (Livros do Mal, 2001), seu primeiro livro, e o que me impressionou foi, além da fluidez da sua prosa, uma “surrealidade” um pouco próxima da que encontramos em alguns filmes de Almodóvar: tudo parece completamente estranho nos contos de Galera mas, a medida que nos aproximamos dos personagens e suas estórias, percebemos que aquilo poderia muito bem acontecer em qualquer lugar e com qualquer um. Sempre há uma possibilidade de realidade por trás do estranhamento e isso é uma qualidade literária que também aparece no romance mais recente de Daniel. Em Cordilheira, além da prosa fluida e dos acontecimentos estranhamente familiares, há outro ponto que chama bastante atenção: enquanto a produção artística contemporânea tem traçado um caminho de questionamento da realidade, trazendo- a para a ficção, Galera resolve fazer o contrário: seus personagens propõem a realização da ficção, em uma intrigante alegoria meta-narrativa.
Com outro nome bastante relevante da prosa atual, André Sant’Anna, tenho uma relação de amor e ódio. E André é assim mesmo: ame-o ou odeie-o e difame-o. E muita gente escolheu difamar, porque sua obra de fato desafia quem insiste em escrever a palavra “literatura” com ‘l’ maiúsculo. De onde vem minha birra com Sant’Anna? Das bobeiras que ele escreve de vez em quando - como o conto
“Nothing is real”, por exemplo -, da insistência em discutir com blogueiros que o criticam (jogue o nome do escritor no Google e veja algumas pelejas históricas), da atitude antipática de usar seu contrato com a Companhia das Letras como argumento irrefutável de que é um bom escritor. E meu amor por ele, de onde vem? De contos espetaculares como “É o caralho” e “A lei”, de sua petulância e coragem ao responder a revista Veja que, em uma crítica totalmente preconceituosa e conservadora, o esculachou completamente, da genialidade de O paraíso é bem bacana (Companhia das Letras, 2006). Soube esses dias que ele está lançando um livro novo, Inverdades (7letras, 2009) e, mesmo sem ainda ter lido, recomendo. Sempre vale a pena ler André Sant’Anna. E, depois da leitura, amá-lo profundamente, odiá-lo com todas as forças ou as duas coisas. Impossível é ficar indiferente à sua literatura.
Luiz Ruffato é quase uma unanimidade. Difícil encontrar alguém que não tenha ficado positivamente impressionado com a leitura de Eles eram muitos cavalos (Boitempo, 2001). Ruffato tem uma ótima receptividade não só pelo público, mas também – e talvez principalmente – pela crítica. São vários os artigos, trabalhos e dissertações sobre a obra do escritor mineiro. Ruffato parece mesmo ter encontrado a forma ideal de representação do nosso tempo: escrita fragmentada, acontecimentos simultâneos e tão intrincados quanto a própria realidade em que vivemos. Vale a pena ler também (os sobreviventes) (Boitempo, 2000), livro de contos que, de algum modo, já antecipa a reviravolta literária que o autor promoveria em 2001. Outra coisa interessante a respeito de Luiz Ruffato é sua visão de literatura como missão, fato que o leva a jamais negar um convite para falar sobre literatura, concordando inclusive em não cobrar nada por suas palestras (ao contrário da maioria dos escritores). E se um dia você tiver a oportunidade de ouvir Ruffato falar sobre o que quer que seja, não a deixe passar por nada. Ele é, de fato, genial.
Para terminar, Marcelino Freire, que já foi definido como o autor que “renova o desespero”. Narrativas curtas, ritmadas, espantosas. Não há quem não fique desconcertado com o conto
“Curso superior”, por exemplo, que assim como as outras narrativas de Contos negreiros (Record, 2005) toca direto nos problemas sociais do país, sem entretanto cair nos clichês já tão desgastados relativos a esse assunto. Marcelino extrapola os limites da literatura engajada, expondo as diferenças sócio-econômicas e as questões raciais por um viés cruel e impiedoso, já marcado na escolha da posição dos narradores, sempre em primeira pessoa. Uma experiência bastante interessante é assistir aos vídeos do próprio Marcelino lendo seus textos. Do conto "Totonha" já ficou uma frase antológica: "Eu que não vou abaixar minha cabeça pra escrever. Não vou."
Muitos outros autores que vêm aparecendo agora ou que já se firmaram como escritores representativos da nossa literatura poderiam estar também nesse texto – Tatiana Salem Levy, Milton Hatoum, Daniel Pellizzari, Joca Reiners Terron, Patrícia Melo, Cristovão Tezza, Bernardo Carvalho, Marçal Aquino, Lourenço Mutarelli, Marcelo Rubens Paiva e muitos, muitos outros – no entanto, o espaço é pequeno, o tempo curto e a vida, muito breve, não permite que consigamos escrever e ler tudo o que desejamos. Mas antes deixar gente de fora do que não ter matéria-prima para um texto como esse. Enquanto tivermos tantos bons autores, dignos de figurar como nomes importantes na prosa contemporânea, poderemos dizer aliviados que sim, a literatura brasileira vai muito bem, obrigado.

Obs: o título desse texto é uma frase do escritor carioca Sérgio Sant’Anna.

3 comentários:

  1. Fiquei espantosamente intrigada, instigada, excitada e sem palavras também. E, claro, o mais esperado: cheia de vontade de ler tudo! :D. Aliás, o Pellizzari ainda é o mesmo do antigo-extinto-mas-sempre-lembrado COL? Eu gostava dele, mas há muito não ouvia falar. E, (outro) ALIÁS, acho que também o Daniel Galera fazia parte dessa galera (sem trocadilhos) do COL.

    P.s: Sempre soube da magnitude da literatura brasileira! \o/

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  2. Sim, sim. Tanto o Galera quanto o Pellizzari faziam parte do COL. Pra quem não conhece, tá aqui: http://www.qualquer.org/col/col_arquivo.html

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  3. Fico triste de não ter lido quase nada disso. =/ Já li os famigerados "Totonha" e "Curso superior", do Marcelino, mas só. Uma pena enorme. Como você mesma disse, a vida é muito breve pra lermos tudo que queremos. Então a gente vai lendo o que pode, quando pode.
    O bom de um texto assim é que a gente vê a opinião de alguém sobre os autores, aí não precisa passar por aquela situação horrível de pedir indicação. Odeio pedir indicação de livro. LOL
    Ah, hoje estava rodando pelo Rio e achei um livro enooorme do Sérgio Sant'Anna por R$10. Comprei. \o/

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