domingo, 14 de junho de 2009

Um dedinho de prosa

Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. Há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa, a não ser... a não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua e apenas sua, a margem a que terá de chegar. Mas será a vida um espaço articulado? E os atos, limitam-na ou ampliam-na? Talvez nada possa ser melhorado, arte alguma criar melhor do que o mundo. E se há limites, são os nossos próprios limites. Então escrever a palavra mínima, que não encerra o vivido e antes o abre para o infinito. Diário de viagem sem viagem ou carta sem nenhum destinatário: palavras que, no máximo interagem, com outras palavras do dicionário. Um escrever que é verbo intransitivo que se conjuga numa só pessoa. Um texto reduzido a substantivo menos que abstrato: se nem mesmo soa, como haveria de querer dizer alguma coisa que valesse o vão e duro esforço de fazer sentido? Por outro lado, a coisa dá prazer. Dá uma formidável sensação (mesmo que falsa) de estar sendo ouvido. O escrito é mais silêncio, quando lido. Certos livros viram camisas europas medalhas. Nos fazem retratos, vozes ditadas à nossa voz. Sigilos sigilosos para nós. Que é feito de minha frase que a lavra de outra fala inventa? A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite. Eu gostaria que o leitor se descobrisse a si mesmo, também, nos meus livros. A si mesmo e ao autor, ao mesmo tempo. Nós somos todos tão parecidos. Todos.


*


ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. Agir: Rio de Janeiro, 2005.
ANTUNES, António Lobo. Entrevista concedida à Revista LER em Maio de 2008.
BRITTO, Paulo Henriques. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. As coisas arcas. Juiz de Fora: Funalfa Edições, 2003.
SANT'ANNA, Sérgio. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. São Paulo: Ática, 1982.
SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
SOARES, Bernardo. Livro do desassossego. São Paulo: Brasiliense, 1986.

4 comentários:

  1. A gente podia dar um prêmio pra quem conseguir ligar o trecho à pessoa. =)

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  2. Bom, eu já achei o Saramago e, claro, o Caio Fernando Abreu! Adorei a ideia, gente! Engraçado como todos falaram, praticamente, do mesmo assunto! |o|

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  3. para laura: com a bibliografia moleia a premiação.

    mix bom é mix q ng vê, vide chemical brothers. idéia boa, bem boa... alexandre graça faria fez algo do gênero e chamou de "clip" - o feito aqui tem melhor resultado, pelo mixing. Régis Bonvicino fez parecido, mas de outra feição: escolheu grandes (na opinião dele) versos da lírica brasileira e lusa, montou e fez poemão (mas tb credita no fim; ainda acho o resultado aqui melhor). Eu, já fiz; em duas leituras. a segunda, bacaninha, ficou com ju stanzani, que maeve quer que quer mas nunca entregaram. Ia do vedas a mim (e o resultado é parecido, mas ao vivo é mais potente).
    Embora as pessoas queiram muito odiar os modelos acadêmicos (eu, de cá, os adoro) posso citar dois que já fizeram: Nietzsche (que acho um bobo e poderia figurar nas estantes de auto-ajuda) e Benjamin, que eu costumo gostar bastante... o segundo, qdo sem mais o que fazer, escrevia como futurista, surrealista, seja lá o que for do século passado, em collages.
    Sim, "Nós somos todos tão parecidos. Todos." e ainda assim, tão diferentes... graças a deus e uns diabos que andam aí.

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  4. e pensar que isso começou com uma sugestão no msn: "você acha que fica sem graça colocar um trecho de um autor?" e deu nisso. adorei esse texto, adorei com força. gostei de poder juntar figuras de uma potência tão grande quanto seu ego (o que impede que um chegue ao outro e eles só têm a perder). gostei de colocar meu zé aí, junto de tanta gente legal. mas o que eu mais gostei mesmo foi ver a sintonia entre eles. trechos foram surgindo ao acaso, laura procurando sabe-se lá onde, eu fuçando no meu livro do desassossego... e encaixou. um português que nunca existiu de fato respondeu a um juizforano (ah, entreguei lol), um nobel complementou a fala de um maldito e deu espaço ao objeto de adoração da laura, que se conjugou com mais um objeto de adoração dela, e, no ato de ouvir ou silenciar, voltamos ao juizforano. é lindo isso. lindo, lindo. me comove, me deixa boba. e me faz amar ainda mais a literatura. seus encontros e seus desencontros. e melhor: as possibilidades que a gente tem de desfazer os desencontros e armar encontros. =)

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