sábado, 31 de outubro de 2009

Parabéns, Carlos!

"Contra o próprio parecer do Poeta (...) de que é poeta menor, e de ritmos elementares, e perecível, que não haja ilusão: este é Poeta Maior."
(Antonio Houaiss)



Assim começa Antonio Houaiss sua introdução à reunião de livros de Carlos Drummond de Andrade e fazemos nossas as suas palavras. Em 31 de outubro de 1902 nascia, em Itabira (MG), um dos poetas de maior expressão em língua portuguesa. Dono de uma extensa e importantíssima obra, Drummond produziu inúmeros poemas antológicos, como "José", "A mesa", "No meio do caminho", "A Máquina do Mundo", "Elegia 1938", "A Flor e a Náusea", "Conclusão". Como breve homenagem aos 107 anos que completaria hoje, selecionamos 4 poemas que não dão conta da grandeza da obra do poeta, mas são um leve esboço do que ela promete ser a quem nela se aventura.



Os poderes infernais

O meu amor faísca na medula
pois que na superfície ele anoitece.
Abre na escuridão sua quermesse.
É todo fome, e eis que repele a gula.

Sua escama de fel nunca se anula
e seu rangido nada tem de prece.
Uma aranha invisível é que o tece.
O meu amor, paralisado, pula.

Pulula, ulula. Salve, lobo triste!
Quando eu secar, ele estará vivendo,
já não vive de mim, nele é que existe

o que sou, o que sobro, esmigalhado.
O meu amor é tudo que, morrendo,
não morre todo, e fica no ar, parado.


*


A ingaia ciência

A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,

a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.

A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência

e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.


*


Composição

E é sempre a chuva
nos desertos sem guarda-chuva,
e a cicatriz, percebe-se, no muro nu.

E são dissolvidos fragmentos de estuque
e o pó das demolições de tudo
que atravanca o disforme país futuro.
Débil, nas ramas, o socorro do imbu.
Pinga, no desarvorado campo nu.

Onde vivemos é água. O sono, úmido,
em urnas desoladas. Já se entornam,
fungidas, na corrente, as coisas caras
que eram pura delícia, hoje carvão.

O mais é barro, sem esperança de escultura.


*


Tristeza no céu

No céu, também, há uma hora melancólica
Hora difícil em que a dúvida penetra as almas
Por que fiz o mundo?
Deus se pergunta e se responde: "Não sei"

Os anjos olham-no com reprovação e plumas caem
Todas as hipóteses
A graça, a eternidade, o amor, caem
São plumas

Outra pluma, o céu se desfaz
Tão manso, nenhum fragor denuncia
O momento entre tudo e nada
Ou seja, a tristeza de Deus

Um comentário:

  1. drummond tornou a nós todos defeituosos. creio que ainda atua como paradigma da produção poética depois dele.
    pena ser mais um defeituoso, defeito desses inescapáveis pelos grandes: acerta em demasia.

    luta de todos os meus momentos: como escapar dele?

    no século XX, em língua portuguesa, não consigo encontrar um mais influente e renovador q ele.

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