quarta-feira, 16 de novembro de 2011

breve tipologia para um romance naturalista

André Monteiro

usa chapéu porque deseja parecer poeta, ou pintor francês, ou cineasta italiano, ou porque leu, ou nem leu, gilles deleuze e deseja ser gilles deleuze. gosta mais de frio do que de calor porque no frio pode se sentir mais europeu e não apenas beber, mas, principalmente, falar com suposta propriedade, tal como um animal refinado, sobre todos os vinhos do mundo. acha bonito ser um jovem de classe média blasé e se masturbar com rock inglês num sábado de tarde nublada. num piscar de olhos, acha que pode se livrar de todos os vícios e dicotomias ocidentais porque leu, ou nem leu, o santo nietzsche. facilmente confunde transgressão com grosseria. faz dança e anda por aí como quem faz dança. beija e abraça todo mundo como quem acredita (ou quer parecer que acredita) que abraçar e beijar todo mundo é ter o corpo livre. todo mundo não, bem entendido, só os mudernos, os que não são mudernos finge que não vê. fala mole, tal como o afetado do avô bicho grilo fala mole, tal como se ninguém tivesse que pagar a conta da sua velha boutique neo-hippie. fala mole e arrastado tal como se o mundo fosse mole e arrastado. goza com o pau dos outros sem a menor cerimônia. acredita que para ficar nu basta tirar a roupa e que ser um artista do corpo é produzir o escândalo do corpo e tratar o público como um débil mental que se choca, se chocaria, com excrementos aureolados. nem desconfia que qualquer picareta, alpinista social travestido de artista, se sacraliza com a estátua da própria pica, ao roçar, na hora certa, curadorias de merda. acha bonito beijar seus amigos na boca na frente de todo mundo. certamente, não fica à vontade em sua enorme preocupação de ser visto como uma pessoa super à vontade. talvez não passe de uma vida amassada e pisada pelos padrões escolásticos da indústria cultural odara. talvez não saiba que existem padrões escolásticos da indústria cultural odara. acha que é possível viver  uma relação aberta e não ter ciúmes de nada ou ninguém, nem sentimento de posse sobre qualquer coisa no mundo, a não ser, obviamente, sobre suas receitas psiquiátricas de anti-depressivos e indutores de sono. acha que é um antropófago só porque mistura meleca com baião e guitarra elétrica com arrotos de oswald de andrade. se acha poeta porque escreve coisas muito difíceis e enfadonhas, como a maioria das coisas que são vendidas por aí como poesia séria. aprendeu a lição. vai dormir como um poeta. acordar como um poeta. tomar banho como um poeta. se masturbar como um poeta. cagar como um poeta e adorar ser chamado de poeta pelo porteiro do seu prédio, que nunca leu seus “poemas”, mas viu sua foto no jornal. acha que basta ler baudelaire para perder a risível auréola. não conversa em mesa de bar. dá entrevistas, ou, de preferência, faz palestras transdisciplinares. não faz mais diferença entre esquerda e direita e viaja tranquilamente no dia das eleições. acha que todos os discursos politicamente corretos são corretos. como a maioria dos amigos politicamente corretos, defende as minorias porque a maioria dos amigos politicamente corretos se consideram minorias. acredita que a margem é a margem e o centro é o centro. acredita em papai noel. acha que tudo o que é natural é bom e nem desconfia que tudo o que chama de natureza não passa de um engodo cultural que lhe foi ensinado pelos escoteiros da ecologia. acha que vai salvar a floresta amazônica votando em candidatos do partido verde patrocinados pela natura. acha que é possível gostar de literatura e não gostar de política literária. acha bonito ter amigos artistas e contar isso pros amigos não artistas. apóia todos os projetos de incentivo à leitura e fruição das artes. acha que ler nunca faz mal à saúde. acha que é filósofo porque se formou em filosofia. há muitos séculos confunde inteligência com erudição. está morto e não sabe e, talvez, nem lhe interessa saber. interessa, certamente, aos urubus famintos que, como eu, já não podem apenas rir da falta (de carne e sangue) que cobre esses velhos ossos ilustrados pelos fins do século XXI.


André Monteiro nasceu em São João Del Rei, Minas Gerais e é pós-doutor em literatura pela PUC-Rio e professor de Literatura Brasileira na UFJF. Publicou A ruptura do escorpião: Torquato Neto e o mito da marginalidade (2000) e Ossos do ócio (2001), ambos pela Editora Cone Sul. Participou ainda como co-autor dos livros Antologia Massa-Nova (Fortaleza), Caos Portátil (México) e Livro de Sete Faces (Juiz de Fora).

2 comentários: