domingo, 28 de junho de 2009

Macunaíma e a infidelidade

por Wallace Andrioli Guedes*


Vou começar esse texto com uma lembrança pessoal: estava no terceiro ano do Ensino Médio, e, naquela época, o livro Macunaíma, de Mário de Andrade, estava entre as obras exigidas para o vestibular da UFJF. Me recordo perfeitamente do meu professor de literatura de então, em sua aula, exibindo o filme homônimo, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, e comentando as cenas que iam surgindo na TV. Na realidade, ele não chegou a exibir o filme completo, acelerando a imagem em momentos que julgava pouco importantes, simplesmente comentando que, no livro, aquilo ocorria de forma diferente, mas como os responsáveis pelo filme não tinham dinheiro na época para adaptar a rapsódia modernista ao pé-da-letra, eles simplesmente criaram aquelas soluções. No fim, aliás, essa era a impressão que o professor buscava passar: Macunaíma-filme era uma obra tosca, mal-feita, uma adaptação ruim do texto original - hoje me pergunto o porquê dele ter exibido o filme em sala de aula, já que o detestava tanto, e só posso concluir que o motivo foi a velha ideia de que assistir a uma adaptação de uma obra literária para o cinema substitui o ato de ler o original. Enfim, naquela época, não poderia nem sonhar que, um dia, teria tal filme como meu objeto de estudo na graduação e no mestrado.

Uma outra pequena história, tão significativa quanto a primeira: já no final da minha graduação, comentando com um colega de curso sobre o filme Macunaíma, tive de ouvir o comentário de que Mário de Andrade deveria estar "se revirando em seu túmulo" por causa daquela adaptação.

Não pretendo entrar aqui no mérito de como analisar uma obra fílmica adaptada de um original literário, até porque não domino profundamente o assunto, mas me parece que, decididamente, estas duas pessoas citadas acima precisam urgentemente repensar a forma como enxergam a relação entre cinema e literatura. E, quem sabe, precisam também rever, como novos olhos, o Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade.
Lançado nos cinemas brasileiros em 1969, num momento em que a ditadura militar embrutecia-se (o AI-5 havia sido instituído em dezembro de 68), Macunaíma foi, provavelmente, o acontecimento cinematográfico daquele ano no país. Seu diretor, Joaquim Pedro, era um cineasta proveniente do Cinema Novo (formava, com Glauber Rocha e Leon Hirszman, a chamada "santíssima trindade" daquele movimento), acostumado com a linguagem documental (é de sua autoria o clássico documentário Garrincha, Alegria do Povo), e não foi com pouca surpresa que sua incursão pelo universo de Mário de Andrade foi recebida. Surpresa, aplausos, prêmios e muito sucesso de bilheteria. Com Macunaíma, pela primeira vez um filme de um cinemanovista alcançava grande êxito de público. Assistindo ao filme, não é difícil entender o porquê: a verdade é que Macunaíma é um trabalho genial, uma impressionante mostra de sintonia de um artista com o seu tempo.
Joaquim Pedro não se prende a amarras. Usa o livro de Mário como um ponto de partida, mas o adapta de forma absolutamente original. Tudo em Macunaíma-filme dialoga com o seu tempo: o uso exagerado das cores, as aproximações com estética e linguagem tropicalistas, o ácido subtexto político que perpassa sua narrativa, a recuperação da antropofagia de Oswald de Andrade. Aliás, como viria a afirmar o próprio Joaquim Pedro, seu filme é muito mais uma leitura do mundo pelos olhos de Oswald do que pelos de Mário. Sendo "infiel" ao original, o cineasta é extremamente fiel a Mário de Andrade, e ao espírito modernista. Mostra que a rapsódia de Macunaíma não é uma obra datada, presa ao seu tempo, impossibilitada de dizer algo a outras gerações; pelo contrário, é extremamente dinâmica, subversiva, e tal dinamismo só foi captado a partir do momento em que Joaquim Pedro entendeu a importância da "infidelidade" em sua adaptação (como o próprio chegou também a afirmar). Uma compreensão, que não consigo deixar de pensar, faria muito bem ao meu ex-professor e ao meu colega.

Fica aqui a dica deste clássico absoluto do cinema brasileiro, ainda, felizmente, fundamental.



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*Wallace Andrioli Guedes nasceu em Juiz de Fora, MG, em 1986. Graduou-se em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2008 e, atualmente, cursa Mestrado em História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense, pesquisando as relações entre o filme “Macunaíma”, o Cinema Novo e o modernista Oswald de Andrade. Em seu blog, Crônicas Cinéfilas, publica críticas cinematográficas.

6 comentários:

  1. toda vez que leio sobre adaptações de obras literárias para o cinema lembro de uma anedota contada pelo Hitchcock para o Truffaut, cito, livre: "dois bodes, nos fundos do estúdio, comiam os rolos de um filme inacabado. Um vira para o outro e diz: 'É... livro é muito melhor'".
    Na mesma entrevista, Hitchcock diz da impossibilidade - pra ele, óbvio - de filmar um grande livro; crendo ser conveniente filmar livros menores (não falo aqui de extensão, beleza). A impossibilidade reside - de novo, pra ele - no seguinte fato: em grandes romances cada palavra é necessária e transformar tudo isso em linguagem fílmica é um tormento. A conversa nasce da fantasia da indústria em querer filmar Crime e Castigo e querer como realizador o Sr. Alfred Hitchcock. Claro, nunca foi realizado. A nossa tentativa - tosquinha, verdade - próxima foi o "Nina".
    A grande sacada - e isso tá embutido no texto do Wallace - é que sabidas as distinções das linguagens - literatura x cinema - o melhor a fazer é criar uma leitura que dialogue com o seu tempo de execução - no caso, cinema-novo. Joaquim Pedro acerta, acerta bonito. Converge com o espírito de épóca (eu de cá acho controvertido, falho e tacanho muito do que foi produzido ali), mas fala com suas circunstâncias. O melhor de ver o Macunaíma é sacar a "traição" que Joaquim Pedro promove - já indicada pelo Wallace. A sugestão é olhar menos apaixonado pro objeto... pra não ficar o mundo, assim, tão "ipanemês de dona Heloísa".

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  2. Acho que o dilema filme x livro pode ser bem explicado por uma apropriação e adaptação do que disse nosso querido Walter Benjamin: a tarefa-renúncia da tradução é impossível, mas necessária. E o verdadeiro sentido sempre vai estar nas dobras da tradução.
    (não é exatamente isso que fala, mas é algo parecido)
    Se traduzir de uma língua pra outra já é impossível, o que dirá de uma linguagem pra outra.
    Acho que isso explica quão acertada é a escolha dos diretores que optam pela infidelidade, como bem observou o Wallace.

    E não consigo lembrar desse filme sem pensar nessa cena aqui: http://www.youtube.com/watch?v=QduPWn4CPx0 lol

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  3. o link é: http://www.youtube.com/watch?v=QduPWn4CPx0

    (sem o "lol")

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  4. me gusta tu pagina web.
    aprendi mucho sobre este tema
    gracias por esta informacionA impossibilidade reside - de novo, pra ele - no seguinte fato: em grandes romances cada palavra é necessária e transformar tudo isso em linguagem fílmica é um tormento

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  5. literatura e especialment

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