domingo, 21 de junho de 2009

Não dá mais pra Murilo Mendes

Porque Juiz de Fora tem muito mais poesia. E vai aqui uma brevíssima compilação.
Muitos poetas ficaram de fora. Ainda tem muito, muito mais.


Cadeira (Fernando Fábio Fiorese Furtado)

Fonética da cadeira — Quando não seja muda, trata-se de uma consoante ora oclusiva, ora fricativa.
Morfologia da cadeira — Os autores divergem quanto a classificá-la como artigo ou numeral (nas lojas e show-rooms), adjetivo ou pronome (nas empresas e repartições públicas), preposição ou interjeição (nos apartamentos de subúrbio). Sem embargo, predominam os que a consideram apenas conjunção.
Sintaxe da cadeira — Em geral sem sujeito, oculta o homem-nádegas. Pode-se atribuir-lhe incontáveis predicados, embora permaneça assento, braços e espaldar.
Estilística da cadeira — Se há estilo, declina para o não ser cadeira.
As leituras da cadeira — Manuais de instruções, bulas de antipiréticos, anais de congressos de lingüística, relatórios de guarda-chaves, resenhas do último livro do último filósofo francês.

*

Cadeira é oração para excomungar cama, porta e caminho.

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Ao princípio (Iacyr Anderson Freitas)

as palavras perderam-se
pelo chão comum
das mitologias, ah
decerto não souberam chegar
ao princípio
ao âmago
ao núcleo da água e do limo
(quem as visse
ante o ouvido endurecido,
já perdidas,
rogando clemência ou nacos de pão
ou vinho)


mas nada, nada resta agora
das palavras,
sua geometria quebrou-se,
desolada.


pois que não fique pedra sobre pedra,
pois que nada ao tempo frutifique
e além do extremo recinto
reste apenas uma nau,
sozinha,
e um dique.

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Manuscrito (Edimilson de Almeida Pereira)

A cada um seu desaparecimento.
Me impressionam as flores,
oficinas de zeros.
Não me ocorre outro nome para elas,
mas pressinto algo em família.
Como se pétalas e veias nascessem
do mesmo alfabeto.
E num caderno durássemos,
ainda que extintos.

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Domingo (Nilson Assunção Alvarenga)

trinta e três e continuo contando relíquias de um tempo que não vivi
sentir passar o tempo não é nada
dói é a alegria de estar vivo
sem anestesia
enquanto os carros passam e a esquina fica,
inequívoca

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mulher em processo (Camila do Valle Fernandes)

as palavras secas, duras, masculinas
as palavras perigosas e pontiagudas entre gritos e sussurros
as palavras penetrantes:
autonomia, repertório, simultaneidade, dessublimador,
associação imagética, corte epistemológico,
marcador diferencial, narrador heterodiegético e
a expressividade em processo.
É que uma mulher não fala assim.
Fala em independência, vocabulário e junção.
Ao que parece e por exemplo.
A palavra, se é do homem e está na minha boca,
o meu corpo sabe: só faço isso para me masturbar.

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cheguei atrasado no campeonato de suicídio (André Monteiro)

cheguei atrasado no campeonato de suicídio
eu queria ser santo e ouvir o silêncio
mas o mundo contaminado desde adão não me deixa a morte em paz
e o piloto automático da nave dos loucos nunca soube apertar
(digo apertar completamente)
o botãozinho do foda-se quem puder nessa casa santa
onde a gente janta com os pais
pede a benção e vai dormir no espelho
entupido de referências analgésicas
qualificativos como poeta, intelectual e artista me provocam nojo
mas eu os utilizao quase que explicitamente
porque nunca fui santo
e quase sei reconhecer um poema ao vê-lo
e quase sei que amo por exemplo pierrot le fou que é um poeta típico
que escreve, sofre, mata e se mata por amor
o amor é a palavra-chave
e o amor pode preencher páginas e páginas de besteiras
e o amor rima com dor
e é cego e etc
e é o princípio de tudo e no princípio era verbo
intransitivo?
a boa poesia se enfia no rabo
falha-me deus pelo abandono que não possuo

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Tu, tempo, de adeuses (Arnaldo Sobrinho)

Tu, tempo, de adeuses
E desvarios teu tecido. Ignoras
O corpo flébil, a garganta de areia
Desterrado o canto mais luminoso.

Se é verdade que de arduidade e fundura
O amor dos poetas, ao menos permite
A dádiva de se encarnar em palavra
O vermelho desta sede – o poema,
Esse castigo.

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Desabafo (Tiago Rattes)

essa vida é uma aposta furada estapafúrdia
um sem fim de versos marginais
dissonantes como os acordes mais
fortes, da guitarra de Lúcio Maia
rasgados, mal-educados, diacrônicos
sílabas apertadas livres
apertos incontáveis
tristes, tipo
uma nóia de Manu(el) Bandeira

Meu caro poeta, aprendi errando
que a palavra é arma mortal
um puta tiro que insiste em sair
pela culatra
e atingir a boca errante
de quem fala
a amarrar as mãos de quem
as escreve
a palavra é forma ingrata tal
o corpo de quem recebe as doses
alopáticas do bombardeio poético
e de cara fechada
vê a vida passar.

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Esparsos (Carolina Barreto)

Fila infinda.
É nesta que aguardamos
Nossos passos
- já pisados por outrem –

nesse déspota (entediante...)
alvorecer

Os dias se devoram
um a um
nesta ânsia de
prosseguir:

Tecemos nossa mortalha
de dia e à noite
desmanchamos. Doce
esperança
é esta que se inaugura
à margem de si mesmo

no entre-tom do auto-engano
e da dúvida


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(Obs: a inspiração do título do post vem da controversa frase "não dá mais pra Diadorim", dita por um personagem do conto "Intestino grosso" de Rubem Fonseca.)

Um comentário:

  1. E vossas poesias minha irmã?
    Dentre tantas mentes inteligentes de Juiz de Fora não exagero em dizer que tu fazes parte delas.
    Pois creio que não conheço por estas e outras bandas pessoa que saiba pintar e bordar tão bem as palavras como você.

    Saudades Pam, um beijo.

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