domingo, 2 de agosto de 2009

TOP 5 - Mulheres de José Saramago


"Muito de homens se tem falado, alguma coisa de mulheres, mas quando assim foi, como de passageiras sombras ou às vezes indispensáveis interlocutoras, coro feminino, de costume caladas por ser grande o peso da carga ou da barriga, ou então mães dolorosas por várias razões, um filho morto, outro valdevinos, ou filha desonrada, é o que não falta. De homens se continuará a falar, mas também cada vez mais de mulheres, (...) as razões são outras, ainda se calhar imprecisas, e é que os tempos vêm aí."
Levantado do Chão, p.p. 183-184


Qualquer leitor de José Saramago que tenha tido contato com mais de dois livros dele pode constatar um aspecto importante da obra do escritor: as personagens femininas. As mulheres de Saramago têm sempre uma presença marcante, chegando muitas vezes a representar o livro do qual fazem parte. Todo TOP 5 é pretensioso e o que está aqui registrado não passa de uma opinião extremamente pessoal (mas, ainda assim, compartilhável) de uma assídua leitora do escritor português sobre um universo enorme mas ainda pouco explorado (estas personagens que aqui estão foram selecionadas entre oito romances e dois contos de Saramago*). E quem ainda não leu os que aqui se encontram, fica a dica.

"Quando, uns anos mais tarde, trouxeram João Mau-Tempo para Lisboa (...), já Sara da Conceição se finara, rodeada pelo riso das enfermeiras, a quem a pobre tonta, humildemente, pedia uma garrafa de vinho, imagine-se, para um trabalho que tinha de acabar antes que se fizesse tarde."
Levantado do Chão, p. 113


5 - Sara da Conceição (Levantado do Chão)
Os pais de Sara da Conceição não queriam que ela se casasse com Domingos Mau-Tempo, que tinha fama de bêbado e que, nas palavras de Laureano Carranca, acabaria mal. Mas a teimosia de Sara foi a ponto de jurar que, "se não casasse com Domingos Mau-Tempo, não casaria com ninguém". Para terminar a guerra familiar e conseguir o que queria, num dia de Maio Sara atravessou o campo, deitou-se com Domingos no meio do trigo alto e, no caminho de casa, parou num riacho para larvar-se porque o sangue não parava de escorrer-lhe pelas pernas. Assim, Sara apareceu grávida e, com esse argumento derradeiro, casou-se. Nos anos que antecederam o suicídio do marido, teve cinco filhos, peregrinou diversas vezes e, em todas as terras em que morou, teve de ir às tabernas buscar o marido. Largou dele algumas vezes também, procurou o pai, escondeu-se à casa de vizinhos. Foi nisso que ele retornou de suas andanças, exigiu a volta dela e, não conseguindo reunir a família, procurou uma oliveira, atou a corda e se enforcou. A morte do marido voltará a atormentar Sara no final de sua vida, quando começar a sonhar que precisa limpar o vergão no pescoço do marido com vinho, para tê-lo de volta, o que "nem por sombras quereria quando acordada, mas no sonho é isto". Um dia, não tendo voltado das suas caminhadas noturnas, foram dar com ela a falar do marido como se estivesse vivo. É internada e morre ainda querendo reviver o marido.


"(...) só falta que Jesus, olhando o corpo abandonado pela alma, estenda para ele os braços como o caminho por onde ela há-de regressar, e diga, Lázaro, levanta-te, e Lázaro levantar-se-á porque Deus o quis, mas é neste instante, em verdade último e derradeiro, que Maria de Magdala põe uma mão no ombro de Jesus e diz, Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes, então Jesus deixou cair os braços e saiu para chorar."
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, p.p. 359-360


4 - Maria de Magdala (O Evangelho Segundo Jesus Cristo)
Bem antes de Dan Brown ficar popular por colocar um filho de Jesus na barriga de Maria de Magdala, estava Saramago unindo os dois. Trabalhar uma personagem já existente é algo complicado; ainda mais no caso desta mulher, que faz parte da história mais contada pela humanidade e durante tanto tempo foi rebaixada. Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Saramago não adere à linha que defende que Maria de Magdala não era prostituta; esse aspecto bíblico é mantido, mas Maria, ao encontrar Jesus, com os pés feridos de caminhar, abriga-o em sua casa e abre mão de todos os homens que vêm procurá-la para cuidar daquele quase garoto. Durante uma semana, Jesus fica na casa dela e ali eles criam um vínculo que permanece após a partida dele ("Aquilo que penduraste na porta para que nenhum homem entrasse, vais retirá-lo, Não poderia ter dentro de casa dois homens ao mesmo tempo, Isso que quer dizer, Que tu te vais, mas que continuas aqui.") e dura até a crucificação, passando pela escolha dos discípulos (ela é a primeira a ser chamada por Jesus). Numa altura do romance, vem uma frase significativa: "As mulheres têm uns outros modos de pensar, talvez seja por o nosso corpo ser diferente, deve ser isso, sim, deve ser isso."

"Tem medo de mim, perguntou a morte, Inquieta-me, nada mais, E é pouca cousa sentir-se inquieto na minha presença, Inquietar-se não significa forçosamente ter medo, poderá ser apenas o alerta da prudência, A prudência só serve para adiar o inevitável, mais cedo ou mais tarde acaba-se por se render, Espero que não seja o meu caso, E eu tenho a certeza de que o será."
As Intermitências da Morte, p. 194


3 - Morte (As Intermitências da Morte)
E no dia seguinte, ninguém morreu. Com esta frase, que inicia o romance, Saramago também começa a apresentar, levemente, a personagem principal da história. A morte (com letra minúscula, porque "a Morte é uma cousa que aos senhores nem por sombras lhes pode passar pela cabeça o que seja, vossemecês, os seres humanos, só conhecem [...] esta pequena morte quotidiana que eu sou", p. 112) é humanizada de forma incrível pelo autor. E mais que humanizada, tornada mulher. A transformação da morte é, no mínimo, surpreendente. Tudo começa com uma carta que envia a um músico para avisá-lo que proximamente irá morrer (método adotado por ela depois de ficar algum tempo sem matar de todo) retorna. Intrigada, a morte a envia de novo. Mais uma vez, a carta volta. Então, ela descobre: enganou-se, a data em que o homem devia morrer já havia passado e ela não o matara. Caso inédito. A partir daí, o livro enfoca as tentativas da morte de alcançar o músico e finalmente matá-lo. Mas, ao se transfigurar numa mulher para se aproximar dele, eles acabam se envolvendo de uma forma profunda e comovente.

"A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos."
Ensaio Sobre a Cegueira, p. 310


2 - Mulher do Médico (Ensaio Sobre a Cegueira)
O fato de uma cidade, um país e talvez todo o mundo encontrarem-se cegos, exceto por uma pessoa já a faz merecedora de atenção. Quando essa pessoa é uma mulher, a atenção deve ser maior ainda. Obviamente, nada numa obra de Saramago está lá por acaso, muito menos isso. Talvez ele esteja valorizando a mulher, talvez alertando-a. É inegável, no entanto, que alguma coisa ele quis dizer ao criar uma personagem como a Mulher do Médico, uma mulher que demonstra, mesmo em seus momentos de maior fraqueza (como seu desespero por não ter dado corda no relógio e, portanto, estar agora desprovida de uma medida de tempo) uma força incrível. Ela não é só o pilar da relação com o marido, mas também protege e cuida de todos os outros cegos de sua camarata, que depositam nela uma confiança extraordinária, porque enxergam nela algo sólido, ainda que não saibam que ela não está cega (como a Rapariga dos Óculos Escuros demonstra em uma só frase, ao ver o desespero da Mulher do Médico com a situação do relógio: "Se a senhora, que é tão forte, está a desanimar, então é porque não temos mesmo salvação".) Sem dúvida uma das mais marcantes personagens femininas de José Saramago, talvez chegasse mesmo a ser a maior de todas, não fosse ter saído da cabeça do mesmo escritor uma mulher que não somente não é cega, como enxerga até demais.

"O grito de Blimunda, terceiro, e sempre o mesmo nome, não foi agudo, apenas uma explosão sufocada, como se as tripas lhe estivessem sendo arrancadas por gigantesca mão, Baltasar, e ao dizê-lo compreendeu que desde o princípio soubera que viria encontrar deserto este lugar. As lágrimas secaram-se-lhe subitamente como se um vento escaldante tivesse soprado de dentro da terra."
Memorial do Convento, p. 330


1 - Blimunda (Memorial do Convento)
Blimunda tem um segredo. Ao conhecê-la, Baltasar Sete-Sóis sabe que ficará ao lado dela dali pra frente, mas se depara com os mistérios da companheira. O que a levaria a comer um pão, com os olhos fechados, todo os dias, antes de se levantar? E esse segredo de Blimunda, que logo é revelado, vai desenvolver a narrativa do livro de forma belíssima. Não fosse pela estranha capacidade da mulher de, quando em jejum, enxergar o interior dos corpos, a passarola do padre Bartolomeu Lourenço não poderia voar, já que se move a vontades, e é Blimunda quem vê a vontade das pessoas, essa nuvem fechada que está dentro de todos nós e entre a vida e a morte. Blimunda Sete-Luas, como é batizada após unir-se formalmente a Baltasar ("Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas", p. 56), não é só uma personagem forte; ela é, acima de tudo, alguém que prende o leitor ao livro, por sua sensibilidade. Arrisco mesmo o palpite de que seria a personificação de todas características, afloradas ou latentes, explícitas ou não, das mulheres às quais Saramago deu vida, até ali e a partir dali.


*
SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
______________. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
______________. A viagem do elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
______________. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
______________. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______________. Levantado do chão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1980.
______________. Manual de pintura e caligrafia. São Paulo: Companhia das Letras, 1977.
______________. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1982.
______________. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
______________. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

5 comentários:

  1. Que boa ideia recortar perfis de mulheres em Saramago. A mulher na obra do escritor português tem a importância dos visionários. Esse escritor é apaixonado pelas mulheres.

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  2. Faltou ''a mulher da limpeza'', O Conto da Ilha Desconhecida!

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  3. realmente, desde o primeiro livro que li dele, notei isso. a importância feminina é enorme nas obras do saramago.

    dimitri, é top 5! não dá pra colocar todo mundo... adoro ela também, mas fazer o quê? falta muita gente...

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  4. Não li o "Memorial do convento", acho que por isso colocaria a mulher do médico no primeiro lugar. Adoro a personagem, ainda mais agora que ela tem a cara da julianne moore lol

    Mas top 5 é sempre assim, polêmico... sem contar que é mto dificil de fazer, sempre fica alguém/algo pra trás.

    Adorei a idéia e o texto, Larissa. ^^

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  5. Estas mujeres si fueron famosas en su tiempo, excelente informacion. Muchas veces se menosprecia el aporte y la importancia de la mujer en la sociedad.

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