quarta-feira, 23 de junho de 2010

O crescimento do jornalismo literário no país

Maíra Valle



Na época das redes sociais como twitter, orkut e facebook, em que o jornal diário, na forma como o conhecemos, está ameaçado e a internet está em todo lugar, qualquer pessoa pode produzir e distribuir textos pela rede. Há uma profusão de informações e imagens, enquanto os conteúdos se tornam cada vez mais superficiais. É comum encontrarmos os mesmos textos fornecidos pelas agências internacionais de notícias em diversos sites. Entretanto, um fenômeno interessante tem acontecido neste terreno árido da mídia do século XXI: o crescimento do jornalismo literário, uma vertente jornalística que utiliza de recursos estilísticos próprios da prosa para enriquecer a qualidade dos textos produzidos. Não se trata de ficção, pois não é literatura, e ainda mantém o foco na informação, como enfatizou o jornalista Matinas Suzuki, em palestra proferida no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Por isso, alguns autores preferem a denominação de literatura ou narrativa de não-ficção.

O jornalismo é historicamente dividido em duas subáreas principais: opinativa e informativa. Normalmente a parte opinativa é atribuída às pessoas que possuem prestígio e respaldo para abordarem determinados temas como ciência, política, relacionamentos, entre outros, e por isso os jornais estão lotados de colunistas que não são jornalistas, mas que tem respaldo perante a sociedade para emitirem sua opinião. À maioria dos jornalistas cabe a parte informativa, que é ensinada nas faculdades através de técnicas para se obter um texto objetivo e imparcial que visa apenas a ofertar a informação. O jornalismo literário é um movimento contrário ao uso do objetivo lead (o primeiro parágrafo dos textos jornalísticos que pretende informar ao leitor o que aconteceu, onde e quando), pois prioriza a subjetividade e profundidade. Com a resolução do fim do diploma para se exercer a profissão, é provável que cada vez mais pessoas com formações em outras áreas comecem a produzir textos jornalísticos e, a partir daí o estilo do texto mude cada vez mais, provavelmente se aproximando ainda mais da literatura.

Essa mudança talvez faça o jornalismo retornar aos seus primórdios, quando ainda não havia essa delimitação clara do que era literatura e do que era jornalismo. Nos idos do século XVII e XVIII os jornais ainda pareciam livros e mesmo a partir do século XIX quando o jornal começou a se profissionalizar, os escritores de renome como Balzac e Victor Hugo, invadiram os jornais e dominaram as redações publicando os famosos folhetins, que aumentavam o número de leitores e davam mais prestígio às publicações. Foi no século XX que os cursos de jornalismo surgiram e o jornal adquiriu o caráter de imprensa monopolista que conhecemos e perdeu a ligação direta com os escritores.

Só então na metade do século XX surge o jornalismo literário. Muitos creditam seu nascimento à edição especial de 1946 da revista americana The New Yorker, considerada a maior representante do gênero mundialmente, em que foi publicada a emblemática reportagem sobre os sobreviventes de Hiroshima. O jornalista John Hershey teve a grande idéia de contar a vida de quatro pessoas 24 horas após o detonamento das bombas. A reportagem foi publicada um ano após Hiroshima numa edição inteira da revista. Segundo Matinas a grande idéia do jornalista foi abordar o aspecto humano. “Hershey teve a brilhante idéia de em vez de contar o que estava acontecendo um ano depois, achou que tinha que fazer uma historia humana. Todo mundo já tinha falado sobre o numero de mortos, clima do ano, sobre a bomba, mas ninguém tinha vislumbrado, do ponto de vista humano, o que era.” Posteriormente, entre as décadas de 60 e 70, o movimento estadunidense do New Jornalism deu corpo ao gênero, com representantes de peso como Gay Talese, Tom Wolfe, Norman Mailer e Truman Capote, cujo livro-reportagem A sangue frio é considerado outra das obras-primas do jornalismo literário. Neste livro, o autor realizou o jornalismo investigativo de um crime bárbaro do assassinato de uma família inteira, projeto que levou seis anos para ser concluído. O autor acompanhou por anos os criminosos até a execução destes, fornecendo uma narrativa detalhada, em que havia a descrição do perfil de todos os envolvidos, o que humanizou não só os assassinados, mas também os seus executores.

Ainda hoje o jornalismo literário é marcado pelo aspecto do drama pessoal, que dá profundidade aos textos. Nas palavras de Felipe Pena, professor da UFF: “Afinal, o que é jornalismo literário? Não se trata apenas de fugir das amarras da redação ou de exercitar a veia literária em um livro-reportagem. O conceito é muito mais amplo. Significa potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lide, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos. No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira.” Ao fugir dos prazos das redações e da necessidade de vender notícias da última hora, há espaço para pesquisar, entrevistar, refletir e construir o texto com o cuidado necessário para que ele se torne algo relevante. Como a idéia do poeta parnasiano Olavo Bilac em seu famoso poema “Profissão de Fé”, a palavra deve ser trabalhada com a precisão e o cuidado de um ourives.
A tarefa de definir o jornalismo literário é bastante árdua, pois afinal, trata-se de um gênero híbrido. Ainda há bastante discussão na academia sobre suas definições, história e rumos. Entretanto, não é difícil reconhecer um texto de jornalismo literário. Segundo Daniela Werneck, mestre em Teoria Literária pela UFJF e aluna de letras da UFMG, a identificação depende da postura do autor: “Se o texto que se encontra presente nos meios de comunicação de massa se presta a mostrar a realidade daquela situação que está sendo narrada, e isso é, praticamente, atuar como um etnógrafo, pesquisando e vivendo com sua fonte para que sua vivência seja conhecida mais de perto, o jornalista está fazendo jornalismo literário ou como costumo dizer, narrativas da vida real. O jornalista que foge à matéria de massa, sem contextualização, fria e com intenções puramente mercadológicas, enxergando seu ofício como uma missão, é o verdadeiro jornalista literário.” Outra forma é reconhecer alguns dos recursos literários utilizados como humanização dos personagens, realismo, técnicas de diálogo, profundidade de análises, dentro outros, que não são características do jornalismo diário comum.

No Brasil o jornalismo literário apareceu por volta por dos anos sessenta, com a revista Realidade, que mesmo fazendo parte do grande grupo editorial Abril, primava por textos bem produzidos e atraentes. Apesar de sua curta vida, foi publicada apenas por dez anos, entre 1966 e 1976, a revista foi um divisor de águas no panorama do jornalismo brasileiro, abrindo perspectivas para outro modo de escrever. Para Daniela, o fato de esta época coincidir com a ditadura militar foi uma das causas do surgimento no gênero no país: “Um período em que o jornalismo aos moldes do new journalism começou a ser realizado no Brasil, foi na década de 60 e 70, no auge da ditadura militar. Uma das explicações para tal produção foi que os jornalistas começaram a ter seus direitos cassados e alguns, para continuarem a lutar em prol da liberdade, continuaram suas ‘manifestações’ na literatura, com os romances reportagens.” Ao longo de nossa história vários dos maiores escritores brasileiros trabalharam em jornais: Machado de Assis, Carlos Drummond, Clarice Lispector, entre tantos outros. Ainda hoje há espaço para eles, como o poeta Ferreira Gullar, que tem uma coluna fixa ao domingos na Folha se São Paulo. Porém, não podemos dizer que estas participações sejam a faceta atual do jornalismo literário, pois estes textos passam muitas vezes mais por artigos opinativos do que qualquer outra coisa.

Foi Matinas Suzuki o responsável pelo ressurgimento do gênero no país, ao propor em 1999 à editora Companhia das letras a idéia do lançamento de uma coleção de grandes obras do jornalismo literário, da qual ele é ainda hoje o editor. Ele conta como se deu a idéia, num momento em que o estilo estava esquecido no Brasil: “Quando pensamos em fazer essa coleção, o assunto no Brasil estava bem adormecido. A Universidade de Nova York montou no final de 1999 uma pesquisa para estabelecer quais os 100 textos mais importantes para o jornalismo. Quando eles divulgaram a lista - com documentários também - percebi que nada daquilo estava acessível no mercado brasileiro. Ou porque nunca tinha sido editado ou já há muito tempo fora de catálogo... Havia uma série de textos importantes que mereciam uma nova edição. Propus à Cia. das Letras e eles gostaram”. Quando o título Hiroshima de John Hershey foi relançado em 2002 rapidamente entrou na lista dos dez livros mais vendidos. Esse fato mostra como um texto jornalístico pode ser atemporal se for bem escrito. Esse foi o passo inicial para que outras empresas descobrissem o filão e passassem a investir no gênero.

Uma dessas iniciativas é a revista Serrote, cujo editor é o próprio Suzuki. A publicação é do Instituto Moreira Salles, famoso por seus investimentos em projetos culturais, como os cinemas Espaço Unibanco. Outro projeto do grupo, especialmente do documentarista João Moreira Salles, é a revista Piauí lançada em 2006 e atualmente a maior representante deste estilo no país. A revista mensal não se preocupa em oferecer notícias frescas aos seus leitores. Mas se aventura por temas tão improváveis quanto à queda do Império da Sadia, os estudiosos de nuvens ou a fila no SUS para troca de sexo, com uma fluidez que é impossível não lê-la do começo ao fim. Não importa se trata de política, cinema ou ciência, pra quem gosta de boa leitura, não tem erro. Há também espaço para outras manifestações artísticas como quadrinhos, fotos e poesia. Não se pode dizer que há nada parecido na mídia escrita brasileira. Ao andar na contramão a revista já angariou uma comunidade de fãs ardorosos no Orkut, o que prova que há sim, espaço pra este tipo de jornalismo no país.

Outro fenômeno interessante é o número crescente de blogs responsáveis por divulgar a produção literária de desconhecidos. Que até podem ficar famosos a partir de tal intento, como a blogueira gaúcha Clarah Averbuck e a paulistana Tati Bernardi, que possuem centenas de ávidos leitores e já publicaram livros. Não podemos negar que há gente interessada em textos de qualidade no país. Porém, é bem verdade que a eles está relegado o espaço alternativo, que hoje em dia se resume ao vasto mundo da internet. Para Daniela Werneck, tudo no fim tem a ver com o poderio econômico que: “Como a maioria dos meios de comunicação é controlada pelo poder econômico e o que interessa é o lucro, o mercadológico ainda se impõe, deixando para os meios alternativos essa produção de matérias humanizadas e, por isso, inseridas no que se pode chamar de jornalismo literário”. Apesar do crescimento do estilo no país o que hoje impera por aqui é a imprensa de celebridade, ou mais claramente, as revistas de fofoca. Tomara que outros grupos empresariais percebam o espaço que há para a produção jornalística de qualidade. E mesmo que seja por vias alternativas, que essa fase se perpetue por bastante tempo: vida longa ao jornalismo literário!


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Maíra Valle nasceu em 1984 em Juiz de Fora. Atualmente se aventura pela Paulicéia desvairada, mas como boa mineira desterrada, é bairrista e continua exaltando a terra natal. É bióloga pela UFJF, mestre em fisiologia humana pela USP e agora cursa o doutorado na mesma área. Acabou de finalizar a especialização em Jornalismo científico na Unicamp.

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